As origens da cerveja na Antiguidade: o primeiro brinde da humanidade

As origens da cerveja na Antiguidade: o primeiro brinde da humanidade


Muito antes de existir a palavra “cerveja”, o ser humano já fermentava grãos sem saber exatamente o que acontecia ali dentro. O resultado era uma bebida turva, levemente adocicada e capaz de provocar uma sensação de bem-estar que logo ganhou importância social e religiosa. A cerveja nasceu assim: por acaso, mas logo se tornou parte da própria história da civilização.

A cerveja e os primeiros agricultores

Os vestígios mais antigos da produção cervejeira datam de cerca de 10.000 a.C., no Oriente Próximo, período em que os grupos humanos começaram a abandonar o nomadismo e praticar a agricultura. Acredita-se que os povos que cultivavam cevada e trigo — principalmente os sumérios e babilônios — descobriram a fermentação acidentalmente, ao deixar mingaus de cereais expostos ao ambiente quente e úmido da Mesopotâmia.

O arqueólogo e antropólogo Patrick McGovern, em suas pesquisas sobre “arqueoquímica das bebidas” (University of Pennsylvania), encontrou resíduos fermentados em vasos cerâmicos da antiga Godin Tepe, no atual Irã, datados de c. 3400 a.C. — um dos registros mais antigos da presença de cerveja na história humana. Segundo ele, essas bebidas primitivas não eram filtradas nem carbonatadas, mas tinham função nutricional e social muito além do prazer de beber.

A cerveja como oferenda e alimento

Entre os sumérios, a cerveja (ou sikaru, como chamavam) estava intimamente ligada à religiosidade. Era considerada um presente dos deuses e oferecida em rituais. A deusa Ninkasi, “senhora do pão e da cerveja”, era cultuada como protetora da fermentação. O célebre “Hino a Ninkasi”, datado de cerca de 1800 a.C., é não só uma canção religiosa, mas também uma das primeiras receitas de cerveja registradas — descrevendo o processo de fermentação de cevada e pão.

A cerveja também cumpria papel alimentar. Por conter carboidratos, proteínas e vitaminas do complexo B, era consumida diariamente como complemento da dieta — inclusive por crianças e trabalhadores. Em sociedades que ainda não dominavam técnicas de purificação da água, a bebida fermentada era uma forma mais segura de hidratação.

Os egípcios herdaram e aperfeiçoaram esse conhecimento. Escavações em Abydos e Saqqara revelaram verdadeiras fábricas de cerveja datadas de c. 3000 a.C., com capacidade para produzir milhares de litros por lote. A cerveja egípcia, chamada “heqet”, era feita de pães de cevada e tâmaras, fermentados e diluídos em água. Era tão valiosa que fazia parte da remuneração de trabalhadores das pirâmides — um pedreiro podia receber até quatro litros por dia como parte do pagamento.

Cerveja, civilização e sociabilidade

Mais do que uma bebida, a cerveja foi um elemento civilizatório. Segundo Jean Bottéro, assiriólogo francês e autor de A Vida Cotidiana na Mesopotâmia, o ato de fermentar grãos representava um marco simbólico do domínio humano sobre a natureza. O consumo coletivo em tigelas compartilhadas, com canudos compridos, reforçava laços comunitários e ritualísticos.

A popularização da bebida fez surgir as primeiras tavernas e pontos de encontro nas cidades mesopotâmicas, onde homens e mulheres bebiam juntos. Curiosamente, os registros cuneiformes indicam que as mulheres eram as principais cervejeiras da época — tanto por seu papel na preparação de alimentos quanto por sua associação simbólica com a fertilidade e a fermentação.

Da religião à ciência: o início da fermentação controlada

Por milênios, a fermentação foi um mistério atribuído à intervenção divina. Só no século XIX, com Louis Pasteur, é que se compreendeu a ação dos microrganismos na transformação dos açúcares em álcool e gás carbônico. Mas, mesmo na Antiguidade, já existia um conhecimento empírico refinado: os povos antigos sabiam que era necessário preservar parte do mosto anterior para iniciar a próxima fermentação — uma prática ancestral do que hoje chamamos de “pitching” de levedura.

O controle sobre o processo de fermentação marcou uma das primeiras formas de biotecnologia artesanal. Cada região desenvolveu seu próprio perfil sensorial, determinado por ingredientes locais, tipos de grão e qualidade da água. Essa diversidade seria a base para as futuras escolas cervejeiras europeias.

Um brinde que atravessou os milênios

Pensar na cerveja como um simples produto é reduzir sua dimensão histórica. Desde os primeiros experimentos em jarros de barro até a complexidade sensorial das cervejas modernas, o ato de fermentar grãos é uma ponte entre passado e presente. A cada gole, há um pouco do espírito dos primeiros agricultores, dos rituais de Ninkasi e das tabernas do Crescente Fértil.

Hoje, arqueólogos e cervejeiros vêm tentando recriar essas receitas antigas — como a Ninkasi Beer Project e as experiências conduzidas pela Dogfish Head Brewery em parceria com McGovern, usando ingredientes como tâmaras, mel e pães fermentados. Essas reinterpretações mostram que, embora as técnicas mudem, a essência permanece: a cerveja continua sendo uma expressão de cultura, comunidade e criatividade humana.

Bibliografia

  • BOTTÉRO, Jean. A Vida Cotidiana na Mesopotâmia. Lisboa: Edições 70, 1989.

  • MC GOVERN, Patrick E. Ancient Wine: The Search for the Origins of Viniculture. Princeton University Press, 2003.

  • MC GOVERN, Patrick E. Uncorking the Past: The Quest for Wine, Beer, and Other Alcoholic Beverages. University of California Press, 2009.

  • SAMUEL, Delwen. “Brewing and Baking.” In: Ancient Egyptian Materials and Technology. Cambridge University Press, 2000.

  • HORNSEY, Ian Spencer. A History of Beer and Brewing. Cambridge: Royal Society of Chemistry, 2003.

  • NINKASI, Hino à Deusa da Cerveja (c. 1800 a.C.) — tradução e comentários em BOTTÉRO (1989).