Cerveja na Idade Média e o papel dos mosteiros: fé, fermentação e hospitalidade
A história da cerveja na Idade Média é também a história da própria Europa em formação. Quando os impérios antigos ruíram, as cidades diminuíram e a vida se reorganizou em torno das vilas, castelos e mosteiros, a cerveja encontrou novos caminhos — e foi dentro dos muros monásticos que a arte de fermentar grãos alcançou um dos seus pontos mais altos.
A cerveja como alimento e conforto espiritual
Durante a Alta Idade Média (séculos V a X), o cotidiano europeu era marcado pela escassez e pela instabilidade. A água, muitas vezes contaminada, tornava-se arriscada de beber. Nesse contexto, a cerveja era uma fonte segura de hidratação e nutrição — rica em calorias, vitaminas e carboidratos. Era comum o consumo diário de até três litros por pessoa, inclusive por monges e crianças.
Nos mosteiros, a cerveja era considerada “pão líquido”. Ela acompanhava as longas jornadas de oração e trabalho, sobretudo durante períodos de jejum, quando a alimentação sólida era restrita. A bebida era vista como um presente divino que sustentava o corpo sem quebrar o jejum — uma espécie de compensação espiritual e calórica.
Segundo o historiador Ian Hornsey (A History of Beer and Brewing, 2003), essa relação entre fé e fermentação foi crucial para a evolução técnica da cerveja: os monges não apenas produziam para consumo próprio, mas também para acolher viajantes e peregrinos, que recebiam hospitalidade nas abadias.
Mosteiros: os primeiros centros de pesquisa cervejeira
Os mosteiros medievais funcionavam como verdadeiros centros de conhecimento — eram espaços de escrita, medicina, agricultura e, claro, fermentação. Monges beneditinos e cistercienses desenvolveram métodos de produção cada vez mais controlados, documentando proporções, tempos de cozimento e formas de conservação.
Entre os exemplos mais notáveis está o mosteiro de Saint Gall, na atual Suíça, cujo plano arquitetônico do século IX mostra áreas dedicadas à fabricação de cerveja (braxatoria). O documento indica três cervejarias dentro do complexo — uma para monges, outra para hóspedes e outra para peregrinos e pobres. A diferenciação de qualidade e força alcoólica da bebida já apontava para a noção de estilos.
Foi também nesses ambientes que surgiram algumas das mais antigas regras de higiene e qualidade da produção. A limpeza das tinas, o controle da temperatura e o uso de grãos bem armazenados eram tratados com rigor. Essa tradição de excelência seria mais tarde herdada pelas escolas cervejeiras alemãs e belgas.
A chegada do lúpulo
Durante boa parte da Idade Média, a cerveja era aromatizada com uma mistura de ervas e especiarias chamada gruit — combinação que variava conforme a região e podia incluir alecrim, mirra, zimbro, louro e até resinas. O gruit era muitas vezes monopólio de autoridades locais ou eclesiásticas, que cobravam impostos sobre sua venda.
Entre os séculos IX e XIII, uma planta começou a mudar esse panorama: o lúpulo (Humulus lupulus). Documentado pela primeira vez em escritos do monge bávaro Abbot Adalhard (c. 822), o lúpulo apresentava propriedades conservantes e proporcionava um amargor equilibrado, substituindo o gruit de forma mais eficiente.
O uso do lúpulo se espalhou rapidamente, especialmente entre as abadias do norte da Alemanha e dos Países Baixos. No século XII, Santa Hildegarda de Bingen, abadessa e estudiosa renascentista precoce, escreveu sobre as propriedades medicinais e estabilizadoras da planta em sua obra Physica. Sua observação — de que o lúpulo “impede a deterioração das bebidas” — foi profética, pois estabeleceu as bases da cerveja moderna.
O legado monástico e o nascimento das escolas cervejeiras
O florescimento das ordens monásticas criou uma rede europeia de produção e troca de conhecimento. As receitas viajavam entre abadias, e a reputação das cervejas monásticas crescia. Abadias como Affligem, Rochefort, Westmalle e Chimay (mais tarde conhecidas como trappistes) consolidaram uma tradição que unia espiritualidade, hospitalidade e excelência artesanal.
A figura do monge cervejeiro — disciplinado, paciente e atento aos detalhes — tornou-se símbolo da busca pela perfeição no copo. Com o tempo, as abadias começaram a vender parte da produção para o público, financiando obras de caridade e manutenção das comunidades. Essa prática lançaria as bases da cultura cervejeira belga e influenciaria profundamente a escola alemã, que viria a codificar regras de pureza e qualidade.
A cerveja como cultura e equilíbrio
Ao contrário da visão moderna que associa álcool a pecado, os monges medievais viam a cerveja como símbolo de equilíbrio — uma dádiva que devia ser apreciada com moderação. Ela integrava um modo de vida baseado em disciplina e harmonia com a natureza. O ato de beber juntos, em silêncio ou em celebração, era também um ato de comunhão.
No fim da Idade Média, a produção cervejeira já havia ultrapassado os muros dos mosteiros. Cidades livres e corporações de ofício começaram a surgir, dando início à profissionalização da arte de fabricar cerveja. Mas o legado monástico permaneceu: cada cerveja artesanal de hoje, feita com cuidado e propósito, carrega um pouco da paciência e da devoção desses monges.
A cerveja medieval não era apenas uma bebida; era um elo entre fé, ciência e sustento. Foi nos mosteiros que o saber empírico se transformou em tradição e técnica. E se hoje apreciamos uma ale belga ou uma doppelbock alemã, estamos — ainda que sem perceber — participando de uma história milenar de espiritualidade fermentada.
Bibliografia
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HORNSEY, Ian Spencer. A History of Beer and Brewing. Cambridge: Royal Society of Chemistry, 2003.
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BLAINEY, Geoffrey. A Short History of the World. Londres: Penguin Books, 2000.
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HILDEGARD OF BINGEN. Physica. Trad. Priscilla Throop. Rochester: Healing Arts Press, 1998.
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BOSTYN, Patrick. The Monastic Origins of Belgian Beer. Leuven: KU Leuven Press, 2014.
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MEUSSEN, Leo. The Abbey Breweries of Belgium. Brussels: Stichting Erfgoed Abdijbieren, 2008.
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GRUYS, Johan. “The Use of Hops in Medieval Europe.” Journal of Brewing History, v. 7, 2010.
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MC GOVERN, Patrick E. Uncorking the Past: The Quest for Wine, Beer, and Other Alcoholic Beverages. University of California Press, 2009.
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