Cerveja e colonialismo: o sabor amargo da expansão europeia

Cerveja e colonialismo: o sabor amargo da expansão europeia

A história da cerveja moderna está profundamente entrelaçada com a expansão colonial europeia entre os séculos XVI e XIX. O que muitas vezes é contado como uma epopeia de descobertas e trocas culturais também pode ser lido como um capítulo de exploração, imposição e globalização de hábitos de consumo — entre eles, o da cerveja. Da mesa dos marinheiros ingleses às tavernas coloniais da África, da América e da Ásia, o avanço europeu espalhou não só suas bandeiras e religiões, mas também o gosto por uma bebida que se tornaria símbolo de poder e civilização ocidental.

As rotas comerciais e o papel da cerveja nas navegações

A expansão marítima europeia, iniciada no século XV, criou rotas de comércio intercontinentais e transformou a cerveja em um bem de valor estratégico. Nas longas travessias, onde a água potável era escassa e de rápida deterioração, a cerveja tornou-se essencial para a sobrevivência das tripulações. Rica em carboidratos e vitaminas do complexo B, a bebida funcionava como alimento líquido — mais segura que a água e mais nutritiva que o vinho leve.

Os navios holandeses e ingleses, por exemplo, transportavam grandes volumes de cerveja, tanto para consumo a bordo quanto para abastecimento das colônias. Os diários de bordo da Companhia Holandesa das Índias Orientais mencionam a cerveja como item essencial nas embarcações que seguiam rumo à África do Sul, à Indonésia e à Índia (Hornsey, 2003). Essa logística marítima contribuiu para difundir estilos locais, adaptando receitas ao clima tropical e às matérias-primas disponíveis nos portos coloniais.

A influência britânica: Porters, Pale Ales e o nascimento da IPA

Entre os séculos XVIII e XIX, o Império Britânico transformou a cerveja em instrumento de identidade e domínio cultural. Em Londres, o consumo de porter — uma cerveja escura, encorpada e acessível às classes trabalhadoras — crescia vertiginosamente. Ao mesmo tempo, a pale ale, produzida com maltes mais claros graças ao uso de carvão coque, tornava-se símbolo de uma nova era industrial.

Mas foi a India Pale Ale (IPA) que melhor representou o elo entre cerveja e colonialismo. Desenvolvida para suportar as longas viagens até a Índia, a IPA levava doses elevadas de lúpulo, que atuava como conservante natural. O amargor intenso, antes um defeito, tornou-se virtude — e símbolo da engenhosidade britânica diante das dificuldades tropicais.

Como observa o historiador Martyn Cornell (2010), “a IPA não nasceu da Índia, mas para a Índia” — um produto comercial moldado pelas necessidades do império. A partir dela, a Inglaterra projetou sua cultura cervejeira sobre as colônias, promovendo o consumo entre colonos europeus e influenciando a produção local, muitas vezes à custa da substituição de bebidas tradicionais.

A cerveja e o cotidiano colonial

Nas colônias africanas e americanas, a cerveja cumpria funções sociais ambíguas. Para os colonos europeus, era um símbolo de status e pertencimento cultural — um sabor “da casa”, que reforçava a distinção em relação às populações locais. Para os povos colonizados, porém, a cerveja europeia muitas vezes representava um instrumento de dominação cultural, substituindo fermentados nativos como o chicha, o palm wine ou as cervejas de sorgo africanas.

Em algumas regiões, a produção local foi adaptada às receitas europeias. Na África do Sul, por exemplo, a colonização holandesa e depois britânica consolidou o uso do termo “beer” para designar tanto as cervejas tradicionais africanas quanto as industriais (Murray, 2019). Isso criou um apagamento simbólico, em que a bebida colonial passou a ser vista como mais “civilizada”, relegando os fermentados locais à marginalidade cultural.

Cerveja e escravidão: a face oculta da expansão

Embora raramente discutido em narrativas populares, o comércio de cerveja também teve vínculos diretos com o sistema escravista. Navios britânicos que transportavam cerveja e rum muitas vezes participavam do tráfico triangular: cerveja e tecidos saíam da Europa rumo à África; pessoas escravizadas eram levadas às Américas; e açúcar, algodão e tabaco retornavam à Europa.

Além disso, nas colônias caribenhas, cervejas importadas eram consumidas pelas elites brancas, enquanto os escravizados produziam e consumiam bebidas fermentadas de mandioca, milho ou melado, consideradas “inferiores”. Essa divisão simbólica do consumo reforçava hierarquias raciais e econômicas — a cerveja como bebida da modernidade e do poder europeu.

A cerveja como símbolo de modernidade e civilização

Durante o século XIX, a consolidação dos impérios coloniais transformou a cerveja em um produto de prestígio global. Cervejarias europeias começaram a instalar filiais ou exportar para mercados coloniais: Guinness na África Ocidental, Heineken na Indonésia, Carlsberg na Índia. As propagandas coloniais vendiam a cerveja como símbolo de progresso, higiene e racionalidade — valores centrais do imaginário europeu moderno (Pettigrew, 2013).

Assim, o colonialismo não apenas espalhou o consumo da cerveja, mas também reconfigurou o seu significado cultural: ela passou a representar a “civilização europeia”, contrastando com o “primitivismo” das bebidas locais. Esse processo de imposição simbólica ecoa até hoje em países onde marcas coloniais ainda dominam o mercado.

Conclusão: o legado amargo da expansão

O colonialismo ajudou a transformar a cerveja em uma bebida global, mas o custo foi alto: apagamento de tradições locais, exploração de povos e recursos, e a consolidação de uma economia mundial desigual. Ao mesmo tempo, também foi nesse contexto que nasceram estilos icônicos como a IPA e que se estabeleceu a base tecnológica da indústria moderna.

Hoje, o movimento das cervejas artesanais tem buscado resgatar a diversidade cultural que o colonialismo sufocou — valorizando ingredientes nativos, saberes locais e histórias esquecidas. Reconhecer o passado colonial da cerveja não é apenas um exercício de memória, mas um passo essencial para construir uma cultura cervejeira mais consciente e plural.

Referências bibliográficas

  • Cornell, Martyn. Amber, Gold & Black: The History of Britain's Great Beers. London: The History Press, 2010.

  • Hornsey, I. S. A History of Beer and Brewing. Cambridge: Royal Society of Chemistry, 2003.

  • Murray, Jessica. “Beer, Colonialism, and Cultural Identity in South Africa.” Journal of African Studies, vol. 45, no. 3, 2019.

  • Pettigrew, Laura. Brewed in the Empire: Colonialism and the Globalization of Beer. Oxford: Oxford University Press, 2013.

  • Unger, Richard W. Beer in the Middle Ages and the Renaissance. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004.