Cerveja e cultura popular: entre tabernas, música e literatura

Cerveja e cultura popular: entre tabernas, música e literatura

A cerveja é, há séculos, mais do que uma simples bebida alcoólica — ela é um símbolo social e cultural profundamente enraizado na experiência coletiva. Onde há cerveja, há encontro, riso, desabafo, canção e história. Desde as tavernas medievais até os pubs contemporâneos, a cerveja acompanhou as transformações da vida urbana e das formas de sociabilidade, tornando-se também um tema recorrente na arte, na música e na literatura.

Das tabernas medievais às casas de pub

Na Idade Média, a taberna era o coração da vida pública. Era o espaço onde camponeses, mercadores, soldados e clérigos se encontravam para comer, negociar, cantar e discutir política. Os cronistas medievais e os textos religiosos frequentemente mencionam esses locais — ora como lugares de pecado, ora como refúgios da comunidade. Como lembra o historiador Peter Clark (1983), o surgimento das tavernas e estalagens nos séculos XIV e XV marcou o início de uma cultura urbana europeia baseada na convivência e na partilha de bebidas fermentadas.

O consumo coletivo de cerveja era, nesse sentido, um ato de comunhão. A caneca circulava de mão em mão, e as canções populares narravam tanto histórias de amor quanto sátiras políticas. Essa tradição de cantar bebendo — mais tarde presente em canções de pub, drinking songs e até em hinos universitários — mostra como a cerveja se tornou um marcador de pertencimento.

Na Inglaterra moderna, o desenvolvimento das public houses (pubs) transformou a cerveja em elemento central da cultura nacional. Escritores como Charles Dickens retrataram o ambiente dos pubs como microcosmos da sociedade britânica — locais de solidariedade, mas também de vício e melancolia. Já o dramaturgo William Shakespeare frequentemente incluía taberneiros e bebedores em suas peças, como figuras cômicas que expressavam a humanidade comum. Em Henry IV, o personagem Falstaff é praticamente uma encarnação da cultura da cerveja: alegre, falastrão e essencialmente popular.

A cerveja na música popular

Ao longo dos séculos XIX e XX, a cerveja encontrou na música popular um de seus meios de expressão mais duradouros. As canções de pub inglesas e irlandesas, transmitidas oralmente, celebravam a amizade, o trabalho e o prazer de beber juntos. Títulos como Beer, Beer, Glorious Beer! (1908) ou The Wild Rover (tradicional irlandesa) refletem a alegria coletiva e a nostalgia associadas à bebida.

Nos Estados Unidos, a cerveja entrou na cultura popular através do country, do blues e do rock, como símbolo tanto da liberdade quanto da fuga. Em “Beer Drinkers and Hell Raisers” (ZZ Top, 1973) e “One Bourbon, One Scotch, One Beer” (John Lee Hooker, 1966), ela aparece como parte da vida cotidiana de trabalhadores e músicos errantes. No Brasil, canções como “Cerveja” (Ira!, 1989) e “Cerveja de Garrafa” (Agepê, 1975) mostram a apropriação tropical e urbana do tema — associando-o tanto ao lazer de bar quanto à boemia melancólica.

Em termos culturais, a cerveja também se tornou um símbolo de resistência e de classe. Em períodos de repressão ou pobreza, beber coletivamente representava uma forma de contestação silenciosa, de manutenção da alegria frente à adversidade. O antropólogo Nigel Barley (1997) observa que, em muitas sociedades, o ato de beber junto expressa igualdade — mesmo que momentânea — entre pessoas de diferentes origens.

A literatura cervejeira

A literatura também consagrou a cerveja como parte da imaginação popular. Em O Retrato do Artista Quando Jovem (1916), James Joyce descreve a vida dos estudantes dublinenses nos pubs de Dublin, onde a cerveja funciona como cenário de debates intelectuais e políticos. Já o poeta tcheco Jaroslav Hašek, em As Aventuras do Bom Soldado Švejk (1921), transforma as cervejarias de Praga em palcos de humor e crítica social — uma tradição que sobrevive nas obras de Bohumil Hrabal, especialmente em Eu Servi o Rei da Inglaterra (1971).

Na Alemanha, Thomas Mann e Günter Grass retrataram a cerveja como parte do cotidiano burguês e operário. Grass, em O Tambor (1959), descreve as cervejarias de Danzig como espaços de tensão política, onde o riso e a embriaguez contrastam com o avanço do totalitarismo.

Na literatura brasileira, embora o vinho e a cachaça tenham predominado como símbolos, a cerveja aparece com força crescente a partir do século XX. Autores como Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca e João Antônio a utilizam como elemento da vida urbana — ligada ao bar de esquina, à conversa trivial e à solidão moderna. O bar, nesse contexto, é o herdeiro direto da taverna medieval: lugar de encontros e desencontros, de reflexões filosóficas e de pura distração.

Cultura visual e contemporaneidade

No cinema e na publicidade, a cerveja consolidou sua imagem de bebida popular e democrática. Filmes como Das Boot (1981), Trainspotting (1996) ou O Auto da Compadecida (2000) usam a cerveja (ou o ato de beber) como metáfora para camaradagem, rebeldia ou escape. Na cultura publicitária, desde o pós-guerra, marcas como Guinness, Heineken e Brahma investiram em narrativas visuais que conectam cerveja a prazer, amizade e pertencimento.

Contudo, a cultura craft contemporânea transformou esse imaginário. Hoje, a cerveja artesanal é também símbolo de criatividade e autenticidade. Os rótulos de microcervejarias tornaram-se suportes de arte gráfica, e eventos como festivais e concursos reúnem músicos, artistas e produtores locais. O elo entre cerveja e cultura popular se renovou: da canção tradicional à estética do rótulo, o prazer de beber continua sendo um ato cultural.

Conclusão

A cerveja é um espelho da sociedade que a consome. Da taverna medieval às playlists de bar, ela atravessa séculos como expressão da vida comum. Sua presença na música, na literatura e na arte mostra que beber cerveja é, antes de tudo, participar de uma história coletiva — uma narrativa de riso, amizade, trabalho e imaginação.

Referências bibliográficas

BARLEY, Nigel. The Innocent Anthropologist: Notes from a Mud Hut. London: Penguin, 1997.

CLARK, Peter. The English Alehouse: A Social History 1200–1830. London: Longman, 1983.

DICKENS, Charles. Sketches by Boz. London: Chapman & Hall, 1836.

GRASS, Günter. O Tambor. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

HRABAL, Bohumil. Eu Servi o Rei da Inglaterra. Lisboa: Dom Quixote, 1984.

JOYCE, James. A Portrait of the Artist as a Young Man. London: Penguin, 2000.

SHAKESPEARE, William. Henry IV, Part I. Oxford: Oxford University Press, 2008