Globalização e identidades locais
A história recente da cerveja é inseparável das transformações econômicas, tecnológicas e culturais do século XX. A globalização, ao mesmo tempo que permitiu a difusão de técnicas e produtos cervejeiros em escala mundial, também provocou um processo de homogeneização dos estilos e marcas. Grandes conglomerados industriais passaram a dominar o mercado global, reduzindo a diversidade e transformando a cerveja em um produto padronizado. Em contrapartida, a partir das últimas décadas do século XX, surgiu um movimento de resistência cultural e econômica: o movimento das cervejas artesanais (craft beer), que reivindicou a diversidade, o sabor e a identidade local como valores centrais. Essa tensão entre global e local molda a cultura cervejeira contemporânea.
A consolidação das macrocervejarias
Após a Segunda Guerra Mundial, a indústria cervejeira passou por um processo de concentração sem precedentes. O desenvolvimento de tecnologias como a refrigeração industrial, a pasteurização e o envase automatizado permitiu às grandes empresas produzir em escala massiva e distribuir globalmente. O resultado foi o surgimento de conglomerados transnacionais, como a Anheuser-Busch, Heineken, Carlsberg e, mais tarde, AB InBev, que incorporaram dezenas de marcas regionais e nacionais sob suas estruturas corporativas.
Segundo Tremblay e Tremblay (2005), essa concentração teve um duplo efeito: barateou os custos de produção e logística, mas empobreceu o perfil sensorial da cerveja, priorizando produtos de sabor leve, baixo amargor e alta estabilidade, adequados para grandes mercados. Assim, estilos locais como altbiers, porters e gose perderam espaço frente às pale lagers e pilsners industriais, tornando-se nichos ou até desaparecendo em alguns países.
Além disso, a publicidade — amplamente influenciada pelo modelo americano de consumo — transformou a cerveja em um símbolo de juventude, virilidade e descontração. Essa estratégia reforçou a padronização do gosto, criando uma estética global da cerveja como produto de massa. Autores como George Ritzer (2011) e Benjamin Barber (1996) analisam esse fenômeno como parte do processo de “macdonaldização” ou “coca-colonização” cultural: a padronização do consumo e dos hábitos alimentares sob a lógica do capitalismo global.
A perda de diversidade e o início da resistência
Entre as décadas de 1950 e 1980, muitos estilos tradicionais desapareceram ou sobreviveram apenas em comunidades restritas. A Inglaterra, por exemplo, viu o declínio das real ales, substituídas por cervejas pasteurizadas de alta carbonatação. Essa perda levou ao surgimento de movimentos de preservação, como a CAMRA (Campaign for Real Ale), fundada em 1971, que lutou pela defesa das cervejas artesanais de fermentação tradicional.
Paralelamente, na Califórnia, o retorno de pequenos produtores inspirados pelas tradições europeias deu início ao movimento craft beer. A fundação da Anchor Brewing Company em San Francisco e, posteriormente, da Sierra Nevada Brewing Co. em 1980, simbolizou o renascimento da produção artesanal nos Estados Unidos. Esse movimento combinava inovação e localismo, valorizando ingredientes regionais e estilos esquecidos. Conforme Tara Nurin (2021) destaca, o renascimento artesanal foi também um fenômeno cultural, impulsionado por uma nova classe média urbana que buscava autenticidade e diferenciação em seus hábitos de consumo.
Cerveja e identidade regional
A globalização não destruiu totalmente as tradições cervejeiras locais; em muitos casos, provocou uma reafirmação das identidades regionais. A Bélgica, por exemplo, manteve sua reputação como território da diversidade, com abadias trapistas e estilos únicos como saison e lambic. A República Tcheca, berço da pilsner, preservou uma cultura de consumo profundamente enraizada no cotidiano social. Na Alemanha, a Reinheitsgebot (Lei da Pureza de 1516) ainda serve como símbolo cultural e turístico, embora sua aplicação tenha se flexibilizado.
Esses exemplos revelam que a cerveja pode funcionar como um marcador de identidade coletiva, associando memória, território e tradição. Como observa Michael Jackson (1997), a cultura cervejeira é uma forma de expressão local tanto quanto a gastronomia ou a música popular. Assim, o ressurgimento das microcervejarias em diferentes países foi também uma resposta ao apagamento cultural promovido pela indústria global.
O movimento craft e o novo localismo
A partir dos anos 2000, o movimento craft beer tornou-se um fenômeno mundial. Países como Brasil, Itália, Japão e Austrália viram um crescimento explosivo de pequenas cervejarias, cada uma reinterpretando estilos clássicos e incorporando ingredientes autóctones — frutas tropicais, madeiras locais, ervas regionais. Esse “novo localismo” articula tradição e inovação: busca reconectar o produto ao território, mas sem rejeitar as trocas globais de técnicas e referências.
De acordo com Garavaglia e Swinnen (2018), essa nova etapa da cultura cervejeira reflete uma mudança estrutural no consumo contemporâneo: o consumidor pós-industrial valoriza a experiência, a história e o senso de pertencimento que acompanham o produto. As cervejarias artesanais passaram a narrar suas origens, celebrar comunidades locais e associar a bebida à produção sustentável e à cultura regional.
No entanto, o próprio sucesso do craft beer trouxe novos dilemas. Muitas microcervejarias foram adquiridas por conglomerados internacionais, diluindo parte de sua autenticidade. O marketing de “cervejas artesanais industriais” criou uma ambiguidade entre o discurso da autenticidade e a prática da produção em larga escala. Como lembra Pilsner e Wilson (2020), o desafio atual é equilibrar a expansão econômica com a preservação das identidades culturais que deram origem ao movimento.
Cerveja como símbolo cultural na globalização
Hoje, a cerveja reflete uma complexa dialética entre globalização e identidade local. De um lado, continua sendo uma das bebidas mais consumidas do mundo, amplamente dominada por marcas globais; de outro, tornou-se um veículo de afirmação cultural e criativa. Cidades como Bruxelas, Portland, Praga, Berlim e Curitiba se projetam como polos de cultura cervejeira local, combinando turismo, gastronomia e inovação.
Em um mundo globalizado, beber cerveja artesanal é também um ato de resistência simbólica — uma forma de reapropriar o cotidiano frente à lógica do consumo massificado. Ao mesmo tempo, é um convite à troca cultural: a globalização permitiu que estilos e técnicas viajassem, se misturassem e se reinventassem em novos contextos. Como conclui Garavaglia (2020), a cerveja se tornou “um espelho da globalização: produto global, alma local”.
Referências bibliográficas
BARBER, Benjamin. Jihad vs. McWorld. New York: Ballantine Books, 1996.
GARAVAGLIA, Christian; SWINNEN, Johan F. M. Economic Perspectives on Craft Beer: A Revolution in the Global Beer Industry. Palgrave Macmillan, 2018.
GARAVAGLIA, Christian. “Beer, Culture, and Globalization.” Journal of Cultural Economics, v. 44, n. 3, 2020.
JACKSON, Michael. The Great Beer Guide. London: Dorling Kindersley, 1997.
NURIN, Tara. A Woman’s Place Is in the Brewhouse: A Forgotten History of Alewives, Brewsters, Witches, and CEOs. Chicago Review Press, 2021.
PILSNER, Daniel; WILSON, Steve. Craft Beer and the Global Market. Routledge, 2020.
RITZER, George. The McDonaldization of Society. 7th ed. Thousand Oaks: SAGE, 2011.
TREMBLAY, Victor J.; TREMBLAY, Carol Horton. The U.S. Brewing Industry: Data and Economic Analysis. MIT Press, 2005.
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