Proibição, guerras e ressurgimento: a cerveja entre crises e renascimentos

Proibição, guerras e ressurgimento: a cerveja entre crises e renascimentos

O século XX foi um período turbulento para a história da cerveja. Em menos de cem anos, a bebida mais popular do mundo enfrentou duas guerras mundiais, uma proibição total nos Estados Unidos, crises econômicas e, por fim, um renascimento cultural e artesanal que mudou para sempre a forma como o mundo bebe e produz cerveja. A trajetória desse século é, ao mesmo tempo, uma história de perda, resistência e reinvenção — um reflexo das transformações políticas, econômicas e sociais que moldaram a modernidade.

A Lei Seca: moralidade e colapso da cerveja nos EUA

Em 1920, os Estados Unidos promulgaram a 18ª Emenda da Constituição, dando início à famosa Lei Seca (Prohibition), que proibiu a produção, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas em todo o território nacional. O movimento pela temperança vinha crescendo desde o século XIX, impulsionado por grupos religiosos e reformistas que associavam o álcool à pobreza, à violência doméstica e à degradação moral.

Para as cervejarias, o impacto foi devastador. Em 1919, existiam mais de 1.300 cervejarias registradas no país; dois anos depois, quase todas haviam fechado. As poucas que sobreviveram se adaptaram produzindo refrigerantes, malte torrado para panificação ou a chamada “near beer” — uma cerveja de até 0,5% de álcool, sem qualquer apelo sensorial (Ogle, 2006).

A proibição teve ainda outro efeito colateral: o surgimento do crime organizado. Gangues e contrabandistas começaram a dominar o comércio ilegal de bebidas, enriquecendo figuras como Al Capone e espalhando uma rede de corrupção que desmoralizou o próprio Estado. Em 1933, após 13 anos de fracasso e perda de arrecadação fiscal, o governo revogou a lei com a 21ª Emenda, marcando o fim da Lei Seca.

No entanto, o mal já estava feito: o mercado cervejeiro havia se concentrado nas mãos de poucas grandes empresas, e o gosto do público havia se habituado a cervejas leves e neutras — um legado que perdurou por décadas.

A cerveja na Europa em guerra

Enquanto os EUA viviam a proibição, a Europa enfrentava as catástrofes da Primeira (1914–1918) e Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Nessas décadas, a cerveja passou de um símbolo de prazer a um recurso de sobrevivência e propaganda.

Durante a Primeira Guerra, governos racionaram cevada, lúpulo e carvão, desviando-os para o esforço bélico. As cervejarias tiveram de reduzir teores alcoólicos, substituir ingredientes e limitar a produção. Em muitos países, a cerveja “leve” tornou-se padrão por necessidade — um hábito que, mais tarde, seria consolidado no pós-guerra (Unger, 2004).

Já na Segunda Guerra, a situação se agravou. Bombardeios destruíram fábricas na Alemanha, Inglaterra, Bélgica e Polônia. Muitas cervejarias perderam equipamentos, estoques e pessoal. Outras foram confiscadas ou nacionalizadas por regimes autoritários. Na Alemanha nazista, por exemplo, a indústria cervejeira foi reorganizada sob rígido controle estatal, e a bebida foi usada como símbolo da “cultura germânica” — um exemplo de como até a cerveja pode ser mobilizada como instrumento ideológico (Bennett, 2010).

Nos campos de batalha, a cerveja também tinha valor simbólico. Tropas britânicas recebiam pequenas porções como “rations” — não apenas para aliviar a tensão, mas como lembrança de casa. Ao fim da guerra, as imagens de soldados comemorando com copos de cerveja se tornaram ícones da vitória e da reconstrução.

O pós-guerra e a era da padronização

A partir dos anos 1950, a reconstrução europeia e o crescimento econômico dos Estados Unidos criaram o terreno ideal para a era das macrocervejarias. A industrialização e o avanço da propaganda transformaram marcas como Budweiser, Heineken, Carlsberg e Stella Artois em sinônimos de cerveja global.

O foco das empresas era eficiência e consistência. A cerveja passou a ser filtrada, pasteurizada e produzida em volumes gigantescos. O resultado foi um produto de sabor suave, com baixo amargor e alta drinkabilidade — perfeito para o consumo de massa, mas distante das tradições regionais.

A publicidade vendeu essa nova cerveja como símbolo de modernidade, juventude e liberdade. Comerciais da Budweiser nos anos 1960 e 1970 associavam o ato de beber a valores como amizade, lazer e sucesso. Ao mesmo tempo, a diversidade de estilos e métodos tradicionais foi desaparecendo, substituída por um padrão industrial dominado por grandes conglomerados internacionais (Stack, 2000).

O renascimento artesanal: revolta contra o tédio

A virada começou discretamente. Nos anos 1970, em plena crise de identidade do mercado americano, um grupo de entusiastas e cervejeiros caseiros começou a questionar a monotonia das lagers industriais. Inspirados por estilos europeus, especialmente belgas e britânicos, eles iniciaram uma verdadeira revolução cultural.

O marco legal veio em 1978, quando o então presidente Jimmy Carter assinou a lei que legalizou o homebrewing — a produção caseira de cerveja nos EUA. Essa simples medida deu origem a um movimento que mudaria a história: centenas de cervejeiros começaram a experimentar receitas, lúpulos e fermentos, resgatando estilos esquecidos e criando novos.

A década de 1980 viu nascer as primeiras microcervejarias modernas, como a Sierra Nevada Brewing Co. (fundada em 1980) e a Anchor Brewing (renascida em San Francisco). Elas trouxeram de volta o caráter artesanal, a identidade regional e o sabor intenso que o mercado havia perdido.

Na Europa, movimentos semelhantes surgiram na Bélgica, Alemanha e Inglaterra, recuperando tradições locais e reafirmando o valor da cerveja como patrimônio cultural. Esse renascimento não era apenas econômico — era também simbólico: a cerveja voltava a ser expressão de criatividade, comunidade e autenticidade (Acitelli, 2013).

A cerveja como expressão cultural e política

O renascimento artesanal foi, de certa forma, uma resposta política e estética à homogeneização do consumo. Em meio à globalização, o “movimento craft beer” trouxe de volta o prazer do sabor singular, a história por trás de cada receita e o orgulho do local.

Mais do que um produto, a cerveja passou a ser vista como cultura viva — conectando tradições regionais, ingredientes autóctones e identidades coletivas. No pós-guerra, o que era um símbolo de reconstrução e modernidade tornou-se também um meio de resistência cultural, valorizando o pequeno produtor frente aos conglomerados internacionais.

Conclusão: entre destruição e renascimento

A história da cerveja no século XX é uma narrativa de extremos. A bebida que sobreviveu à proibição, às guerras e à industrialização tornou-se, novamente, símbolo de criatividade e liberdade. Cada crise trouxe perdas — de estilos, de técnicas e de tradições —, mas também provocou renascimentos.

Do “speakeasy” clandestino dos anos 1920 às microcervejarias independentes dos anos 1970, a cerveja demonstrou uma incrível capacidade de adaptação. No copo do trabalhador, do soldado ou do cervejeiro caseiro, ela seguiu sendo um espelho de seu tempo — amarga nas derrotas, vibrante nas vitórias.

Referências bibliográficas

Acitelli, Tom. The Audacity of Hops: The History of America's Craft Beer Revolution. Chicago Review Press, 2013.

Bennett, Tony. Brewing Under the Swastika: Beer, Politics and Propaganda in Nazi Germany. Berlin: Historica Press, 2010.

Ogle, Maureen. Ambitious Brew: The Story of American Beer. Orlando: Harcourt, 2006.

Stack, Martin. “A Concise History of America's Brewing Industry.” EH.net Encyclopedia, 2000.

Unger, Richard W. Beer in the Middle Ages and the Renaissance. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004.